Procusto,
segundo a mitologia dos gregos antigos, era um malfeitor que morava
numa floresta na região de Elêusis (península da Ática, Grécia). Ele
tinha mandado fazer uma cama que tinha exatamente as medidas do seu
próprio corpo, nem um milímetro a menos. Quando capturava uma pessoa na
estrada, Procusto amarrava-a naquela cama. Se a pessoa fosse maior do
que a cama, ele simplesmente cortava fora o que sobrava. Se fosse menor,
ele a espichava e esticava até caber naquela medida.
A simbologia por trás desse mito
representa a intolerância diante do outro, do diferente, do
desconhecido. Representa uma visão de mundo totalitária daquele sujeito
que quer modelar todos os seres a sua própria imagem e semelhança. É a
recusa da multiplicidade, da diversidade, da criatividade, da
originalidade.
Procusto ou “as
cegueiras do conhecimento” esteve presente, por exemplo, na consciência
dos juízes de Sócrates, quando condenaram-no a morte por ter
“corrompido” a juventude ateniense; esteve presente também no imaginário
dos soldados romanos que perseguiam e matavam cristãos por seguir uma
religião que se opunha ao paganismo e a figura sagrada do Imperador;
continuou presente no Tribunal da “Santa” Inquisição que condenou à
fogueira todos àqueles que eram contrários aos seus dogmas: Giordano
Bruno, Galileu Galilei (foi poupado por ter negado suas teorias
científicas) e até Joana D´arc; esteve presente também na consciência
dos reis absolutistas; nas revoluções burguesas; no processo de
escravidão mercantil; na formação dos partidos nazi-fascistas; no
extermínio de milhões de judeus nos campos de concentração, de trabalho e
também nas Guerras Mundiais… (só para citar alguns poucos exemplos…)
O
espírito de Procusto, esteve presente em várias etapas de nossa
história e ainda continua atormentando a escola tanto quanto o processo
educativo, em outras palavras, está presente na consciência humana
produzindo “cegueiras”, erros e ilusões do conhecimento. Dessa forma:
Quanto sofrimento e desorientações foram causados por erros e ilusões ao longo da história humana, e de maneira aterradora, no século XX! Por isso, o problema cognitivo é de importância antropológica, política, social e histórica. Para que haja um progresso na base no século XXI, os homens e as mulheres não podem mais ser brinquedos inconscientes não só de suas idéias, mas das próprias mentiras. O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez. (MORIN, 2003, p. 33)
Mas
como perceber os erros, ilusões e cegueiras em torno do conhecimento
humano? Ou melhor, como reconhecer o fantasma de Procusto? O filósofo
francês Edgar Morin em seu livro: “Os sete saberes necessários à
Educação do futuro”, nos apresenta algumas explicações:
O conhecimento [...] é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento[...] A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro. (MORIN, 2003, p. 20)
Portanto,
o conhecimento é um processo e produto da consciência humana, na medida
em que, colhe dados da realidade através de habilidades de pensamento
(tradução/reconstrução); dados que são construídos pela percepção dos
sentidos (tato, visão, audição, olfato e paladar); processados por nossa
imaginação e linguagem; armazenados na memória e transmitidos pela
oralidade. Através do processo de “tradução e reconstrução” corre-se o
risco do erro, pois a Interpretação (decorrente do processo do pensar)
depende da subjetividade do sujeito que conhece e de sua visão de mundo
(conjunto de costumes, tradições, hábitos, crenças, etc.) que são
assimilados socialmente.
Nesse
argumento conceitual em torno dos erros, ilusões e cegueiras que são
inerentes no processo do conhecimento humano, Morin expõe, pelo menos,
duas ideias que merecem ser problematizadas: “A subjetividade do sujeito
que conhece” e a “sua visão de mundo”.
Quando
pensamos em “subjetividade do sujeito que conhece”, e nos remetemos a
outras leituras de Morin, entendemos que o ser humano é ao mesmo tempo sapiens, no sentido de ser dotado da racionalidade, mas também é demens, isto
é, capaz de condicionar seu pensamento e ação de acordo com sua
afetividade, desejos, medos, perturbações mentais, por suas emoções de
maneira geral. Isto quer dizer que subjetivamente, somos “atormentados”
por nossas emoções que também condicionam nossas atitudes. Dessa forma,
sabemos que em muitas ocasiões temos uma alta probabilidade de cometer
erros e ilusões quando agimos de acordo com “impulsos” afetivos, ao
ponto de mentir para si próprio ou projetar no outro nossos próprios
erros, Segundo Morin:
Cada mente é dotada também de potencial de mentira para si próprio (self-deception), que é fonte permanente de erros e ilusões [...] a tendência a projetar sobre o outro a causa do mal fazem com que cada um minta para si próprio, sem detectar esta mentira da qual, contudo, é autor. (MORIN, 2003, p. 21)
Mas também,
podemos cometer o erro de agir com tamanha racionalidade, ao ponto de
nos desumanizar (perdendo o senso de solidariedade e coletividade), como
nosso amiguinho Procusto, ou nossa querida Escola que pode ser
caracterizada como uma “Instituição regularizadora, normalizadora de
comportamentos, seletiva e discriminatória” como alega a educadora Luiza
Cortesão da Universidade de Coimbra em palestra proferida no VI
Colóquio sobre Instituições Escolares da Universidade Nove de Julho em
setembro de 2009.
A segunda
consideração que permeia a definição de “cegueiras do conhecimento” para
Morin é a consciência de “visão de mundo” do sujeito, que o autor irá
classificar como “paradigmas do conhecimento”, estrutura que condiciona
os seres humanos a erros interpretativos da realidade, pois direciona o
seu conhecimento, pensamento e ação segundo concepções que são inscritas
culturalmente, é o que denomina imprinting cultural, “marca
matricial que inscreve o conformismo a fundo, e a normalização que
elimina o que poderia contestá-lo” (MORIN, 2003, p. 28). Portanto:
…O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento consciente, controla-o, neste sentido, é também supraconsciente [...] o paradigma instaura relações primordiais que constituem axiomas, determina conceitos, comanda discursos e/ou teorias [...] Assim, um paradigma pode ao mesmo tempo elucidar e cegar, revelar e ocultar. É no seu seio que se esconde o problema-chave do jogo da verdade e do erro. (MORIN, 2003, p. 26; 27)
O fantasma de
Procusto é justamente essa “visão de mundo” fechada em si mesma,
paradigmática, dogmática e totalitária que imprime uma matriz cultural
que permeia nossas ações e pensamentos e que inevitavelmente conduz os
seres humanos a erros, ilusões e cegueiras no processo do conhecer,
fruto da consciência humana. Essa “visão de mundo” imprime idéias,
valores, percepções falsas da realidade, e de certa forma, bloqueia o
conhecimento do ser humano e inevitavelmente suas ações.
A
Instituição escolar vem reproduzindo essa “visão paradigmática” desde a
sua origem, e atualmente problemas como: evasão, repetência,
indisciplina, violência, etc. são decorrentes de uma educação que não é
compatível com as novas demandas culturais e sociais de educandos, e
dessa forma, não oferece um tipo de ensino pertinente, global,
contextualizado, que orienta uma nova leitura da realidade, ocultando
possíveis erros, ilusões e cegueiras… chegar a esse tipo de conhecimento
será desafio ou utopia? Derrotar Procusto ou ser seu amigo?
Essas
questões estão no cerne dos debates educacionais nos últimos anos e
devem ser problematizadas na perspectiva de encontrar um novo modelo de
Educação, adequado com as transformações tecnológicas e científicas da
atualidade. Os desígnios do século XXI declaram novas matrizes
curriculares e novos ordenamentos disciplinares para receber essa nova
demanda de educandos. A complexidade dos problemas relativos à Educação
atual exige novos direcionamentos pedagógicos com a perspectiva de
evitar novos erros e cegueiras para as novas gerações e definitivamente
aniquilar o fantasma de Procusto.
Escrito por André Rodrigues, historiador, coordenador do curso de licenciatura em História da UNIBAN/ANHANGUERA
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